"Altos Serros, Abaixai-vos, Deixai Ver o Guadiana"
Manuela de Azevedo
Jornal "Diário de Lisboa" de 26 de Março de 1952 (Jornal "Diário de Lisboa")
Descendo as 27 milhas navegáveis de Mértola a Vila Real de Santo António
Vista de Mértola e Rio Guadiana (Edição Costa)
Quem já tiver atravessado a planície escaldante do Alentejo e ali haja inquirido como é ou como sente o serrenho, lá para os lados de Mértola, alguma vez terá ouvido a sua voz muito dolente e arrastada repercutindo e ondulando pela charneca além. Como eco que se repete de monte para monte, ou um apelo que se arrasta e estrangula, no esforço enorme de ser ouvido dos quatro cantos da terra, o alentejano canta, canta, que parece até às vezes que chora, moiro cativo das sesmarias. Ali para o cabo do Alentejo, terra vermelha sem hortejos nem tréguas de verdura, o povo analfabeto, seco de carnes, esguio como quem vai a pedir do céu o que a terra não lhe concede, ouvi-lo-emos cantar esta quadra saudosista que repercute até às margens do rio:
Altos serros abaixai-vos
Deixai ver o Guadiana...
Mais vale o amor de uma hora
Que o jornal de uma semana.
Não falam aqui, apenas, o sangue ou o coração do maioral, separado da companheira semanas inteirinhas e que pela sua companhia de uma hora dará toda a riqueza de um pobre, o jornal de uma semana razão da sua existência, consequência do seu esforço pela vida. Fala também o homem que tem ligado a essa mesma vida ansiedade á sua natureza amorosa o saudosismo do rio, cujo destino milenário parece contemporâneo da criação humana.
Efetivamente, muito antes dos fenícios, que o sulcaram como o atestam os seus barcos de Monte Gordo e os caracteres, mesológicos da região, outros teriam utilizado a sua pesca e o seu curso de águas, fácil via de comunicação com o mar. Os Romanos conheceram-no e utilizaram-no nos seus labores e batalhas e os Árabes mais tarde, chamaram-lhe Rio Ana- «Gua Iana» ou Uadiana e Odiana, nome que ainda se pressente, quando o povo diz Godiana, mal tocando a consoante inicial.
Altos serros abaixai-vos, deixai ver o Guadiana deixai-o ver, sobretudo aos Portugueses que vivem longe das lides, dos anseios, das necessidades, das alegrias e pesares das gentes das suas margens. E gente bem diferente, por vezes, será esta que vamos ver, sem intuitos etnográficos, mas com o traço largo da reportagem fugidia. Comece, por isso, o leitor por lembrar linhas essenciais da geografia indispensáveis a quem se apronta para descer o rio: o Guadiana é nosso terceiro curso de água, do Tejo e do Douro, disputando no rio o seu valor económico.
Nasce em Espanha, nas lagoas de Ruidera, pôs outrora frente a frente fortalezas de Elvas e Badajoz, namorisca a portuguesa aqui e além, e com ela de braço dado entra definitivamente em Portugal á beira de Mourão. Mas vem o rio, então, de sangue alvoroçado. Cacheia, grita, esbraceja, pode ainda com ele. Até que o seu alvoroço se amansa para cá do Pulo do Lobo. Aqui, águas precipitam-se de rochedos tão altos unidos, que parece que as duas margens se beijam. E daqui em diante, tudo são langores adormecidos. Ao passar na ponte de Serpa, nos refolhos da sua consciência dormem ainda os pegos traiçoeiros em que se perdem, todos as vidas intemeratas ignorantes. Mas vem depois a calma pachorrenta. Até à vila dos “Mertolengos” e dominadas as fráguas que lhe eriçam o leito, é já um regularizador de chuvas e calores, pronto para ser útil às terras que Iho reclamam, se por acaso os seus serros se abaixarem para o receber. Depois, é Pomarão, o mais pitoresco porto interior de Portugal, a sua vida rica de motivos e caracteres, dupla nos seus fenómenos espirituais, materiais e até políticos. É que, a partir de Pomarão, o Guadiana é fronteira de Portugal e Espanha. E o rio, que divide duas nações seculares, serve também para unir dois povos de características tão diferentes no todo e aqui, afinal, tão confundíveis por vezes.
Gente pobre é a andaluza, a alentejana e a algarvia que ele serve. Mas mais pobre seria se na verdade o rio, com o seu caudal dominado, não suprisse muitas vezes a pobreza das terras que é e banha. Ao rio vai o povo buscar água para regas e até para beber; o peixe de que se alimenta e que também negoceia; o caminho que o leva ao convívio de outras gentes; o instrumento da maravilhosa aventura do seu destino de contrabandista...
«Gasolina» transportando passageiros no Guadiana
De Pomarão a Vila Real de Santo António são 27 milhas navegáveis, sem sinalização, servida apenas pelas escalas colocadas pela empresa da Mina de S. Domingos. É também esta que tem tomado a seu cargo as dragagens totais do rio -antes da guerra- e as parciais levadas frequentemente a efeito, para manter o tráfego desta via fluvial internacional que serve, é certo, os seus interesses particulares, mas também está ao serviço do comércio e da indústria de Vila Real, de Alcoutim, de Aiamonte e de La Laja. O Estado, considerando todas estas circunstâncias, colabora no desassoreamento do rio, isentando de direitos alfandegários o carvão consumido pelas dragas...
Assim é possível que o Guadiana, de mais largas possibilidades para a navegação, seja constantemente sulcado por barcos de certo porte -às vezes de 2 mil e até 4 mil toneladas-, se acaso o seu comprimento for compatível com a largura do rio, diante de Pomarão.
Até Mértola, entretanto, o seu leito pedregoso poderá ainda comportar, mesmo navegando à luz do luar, barcos de 50 toneladas e muitos são, na verdade, os que o sulcam por ali, carregados de trigos para as populações marginais ou até carregados de carvão, adubos e madeiras, uns desviados da sua rota de Lisboa para Pomarão, estas chegadas das regiões nortenhas, para satisfazer necessidades da construção civil local.
Menos de 6 horas leva o rio a ser vencido pelos «gasolinas» que, partindo de Mértola, transportam passageiros e mercadorias para Vila Real, com abordagem em Pomarão e Alcoutim.
Custa o trajeto 15 escudos, mas, como é flutuante o número de passageiros, não tem dia de saída o «gasolina» que os serve. Também por isso e porque a gente é pobre, entre Vila Real e as povoações à volta de Pomarão estabeleceu-se uma forte corrente de passageiros de um carácter edificante. São às vezes aos 80 e 100 os que vão ter com os comandantes dos barcos nacionais e estrangeiros, pedindo-lhes licença para os deixar subir ou descer o rio nos seus «decks» disponíveis. Viajam de graça e, ao descer em Pomarão, os homens desbarretam-se e assim pedem à guarda-fiscal:
- Ó senhor funcionário dá licença que desça?
Não pertence aos portugueses toda a toalha de água do Guadiana. Em teoria, metade do rio é propriedade da Espanha, outra metade pertence a Portugal. Na prática, porém, e por acordo da navegação dos dois países, qualquer deles seguirá indistintamente a toalha navegável. É que o rio, apesar de medir em geral 200 metros e ter 300 na largura máxima -fora, naturalmente, diante de Aiamonte e Vila Real, porque aí mede à roda dos 600 metros- tem muito reduzidas as suas condições de navegabilidade. Alternam com a profundidade média de 3 metros e meio muitos baixios e toalhas de areia que sonegam as suas margens ao contacto das quilhas e das proas, ao longo de um trajeto sinuoso que chega a desenhar um Z muito apertado, no lugar denominado Torno da Pinta.
O rio impetuoso, que fica para lá do Pulo do Lobo, rompe às vezes, de dentes aguçados, contra as margens e aqueles que as povoam. O cordeirinho feito lobo tudo então inunda. Durante dois ou três dias, entre janeiro e abril fecha-se-lhe a porta à navegação. Os peixes colhidos na sua alegre vida pelos fundos pedregosos, sufocam sob a onda barrenta que revolve as entranhas da terra. E, se escapam a este inferno do inverno, morrerão sob os efeitos sulfurosos das águas das represas da Mina, cujas comportas se abrem lentamente, nos dias de grandes cheias, com licença das entidades administrativas. Vendo descer as águas das comportas entreabertas, do outro lado da raia, sem dó nem piedade, abrem a toda a largura as represas da mina de Herrerias, cujo porto de embarque -pirites como em S. Domingos- recebe o nome de La Laja, um pouco aquém de Alcoutim.
As águas revoltas, sujeitas ao movimento das marés, sobem, então, às vezes 200 metros, como em 1876 e pouco menos em 1912 e 1947 que deixaram por três meses cortado o movimento de margem para margem diante de Mértola.
O grande inimigo do Guadiana não são, porém, as águas das represas nem as suas grandes cheias, mas o progresso que vai abrindo as estradas e criando as carreiras de camionetas. Os adubos que os barcos da CUF levam do Barreiro ficam agora no cais de Alcoutim, donde a camionagem os transporta a Mértola em duas horas apenas; muitos Mertolenses preferem seguir a mesma via por terra, que fica apenas cinco ou seis escudos mais cara, a tomar o gasolina, mais barato, mas muito mais demorado. Aos apressados ficará, porém, negado o gosto contemplativo pela paisagem marginal do rio. Duas margens, dois corações, dois corpos distintamente vestidos. Para cá de Pomarão, até Vila Real, tudo na margem portuguesa são graças e ademanes de donzela, engrinaldada da paz dos olivais, cachopinhos, rebanhos bucólicos, figueiras ainda sem rebentos, desgrenhadas e hostis, pondo de longe uma mancha subtil de um cinza violáceo que paira sobre o verde suave dos trigais de palmo e meio de altura.
Do lado espanhol, Andaluzia não tem ainda o calor dos cravos rubros nem o quente explodir das malaguenhas. As margens são calvadas, aqui e ali abruptas, xistos pontiagudos como agulhas, voltados para o céu, donde foram calcinados pelos séculos, que só aqui ou além penitencia o inferno dos cômoros, rezando uma ave-Maria de esperanças trigais. São poucos os campos cultivados e os que o estão foram-no quase sempre por mãos portuguesas. Aqui há anos, quando a peseta estava a 20 e a 30 centavos, os pobretanas da margem de cá vendiam orlas e courelas por dois contos de réis e, atravessando o rio, iam comprar terras grandes que lhes ficavam pelo valor das pequenas. Os pés fincados na mesma terra e lavados no mesmo rio, assim se lhes mudava a fazenda em hacienda, onde lhes cabiam mulher e filhos. Para os outros parentes que ficavam do lado português, bastar-lhes-ia gritar de uma margem à outra: - Eh! Maria, como vai o nosso pai?
Assim vivem, nos povos e pueblos frente a frente, duas nações que nasceram no mesmo berço e se fizeram pela mesma lei, à medida que os seus chefes foram cortando na terra o feitio das duas pátrias.
Descendo, porém, o rio, pressentem-se os seus problemas. O barco vai traçando a esteira milenária da sua linha. Numa margem e na outra, só em junho florirão os eloendros vermelhos. Em abril e maio, as papoilas descerão das lombadas dos serros, sobrevoadas pelas abelhas atraídas de muito longe. A paisagem algumas vezes confraterniza, luso-espanholamente, em requebros de graça; outras, alterna indiferente à fealdade da vizinha. Raras vezes, porém, se verão, do outro lado da Espanha, as amendoeiras em flor ou, como agora, já despidas do seu véu de noivado, preparadas, de verde esperançoso, para os fenómenos misteriosos da sua procriação.
Vigiam a Natureza e os homens que a povoam neste semideserto panteísta do lado espanhol, menos de 30 carabineiros espalhados pelos quatro postos caiados de branco, entre Pomarão e Aiamonte, e cerca de 90 guardas-fiscais do lado de cá, nas 31 casas amarelas que se empoleiram ao longo daquelas 27 milhas abertas à navegação internacional, os Espanhóis acompanhados das mulheres e filhos, os Portugueses, por lei, entregues à nostalgia da família, salvo se à roda do posto houver alguma povoação e, nesta, mocinha que os faça enraizar à terra, sem perigo para os seus deveres.
Porto de La Laja
Não são muitas, aliás, as possibilidades que se oferecem aos soldados da nossa guarda-fiscal. Poucas povoações encontrarão na margem portuguesa, das três ou quatro que disputam a Puerto Carbon as primazias do melhor carvão de sobro e azinho; Montinho das Laranjeiras e Laranjeiras, com Guerreiros formando uma trilogia abecedária, cuja professora, pelas 9 horas, se vê do rio ao longo do caminho em direção à escola, seguida processionalmente pelos pequenos de Montinho; Álamo e Foz de Odeleite, na foz do rio do mesmo nome, onde quem passa no Guadiana verá, no tempo das debulhas, a rustica evocação dos tempos primitivos, em que os jericos e os rebanhos pisavam nos eirados o trigo por debulhar. Virão, Azinhal com a figura lendária do guerrilheiro Remexido, a «Casa dos marinheiros, que tem história na região, pois ali se instalavam os homens da Marinha encarregados da vigilância das leis e da segurança dos homens que passavam no rio: Almada de Ouro, com alguns casalinhos espalhados por aqui e além, completa o quadro rustico e urbano da margem portuguesa do Guadiana, intensamente cruzada pelos botes e pequeninos barcos, de vela em riste como o escudo dos antigos Cruzados que por aqui navegaram.
Do outro lado de Espanha, mal chegaram ainda os espanhóis para arrotear as terras, pastorear os gados e erguer as casas todas caiadas de branco como as portuguesas. Puerto Filipe, com 80 por cento da sua população constituída por gente portuguesa, Puerto Carbon, S. Lucar del Guadiana, Castelejos, Granado, o porto de La Laja, muito inferior ao porto de Pomarão, e Hacienda de la Cruz, com a casa de la cruz», típica na região, porque tem na parede uma grande cruz de azulejos, são todas as pequenas povoações que se descortinam ao longo deste cruzeiro que vai findar em Vila Real, diante de Aiamonte.
Esta é, portanto, a terra e a gente que o Guadiana banha, vistas do lado do rio, completando-se uma à outra, caracterizando-se mutuamente. Aqui as mulheres de trajos flamantes, ali vestindo à andaluza, de negro, veludilho e bombazina, indiferentes à divisão das fronteiras e ligadas pelo braço do rio. Toda ela, porém como é diferente da que se vê e ausculta em Mértola, com as características do povo alentejano, sem as influências da mestiçagem arraiana. A vinte quilómetros da fronteira, há serrenhos do Algarve que se contam por »vinte homens e quatro algarvios«. Mas estes, que estão sobre o limite das duas fronteiras, ainda no Alentejo, consideram-se algarvios no Pomarão: depreciam os do Algarve, se estão em Mértola; uns, os serrenhos, do Alentejo, como os chamam depreciativamente os algarvios, ficam agarrados à terra e á fome das crises graves; os outros, os da terra fronteiriça espanhola e marginal, atraídos pelo exemplo do Guadiana, emigram, saem do torrão natal, fazendo pela vida. Depois, se é certo que ambos são diferentes no falar, sente-se nos Algarvios uma ternura pelos cantares alentejanos que os do Alentejo não partilham, em relação aos do Algarve. Será porque os Algarvios dizem mal do falar alentejanos? Disto e de muito mais se vai tentar traçar um quadro nos artigos que se seguem: as gentes e as terras, vistas do lado de dentro, debruçados sobre o rio Guadiana...
Mértola e os seus pescadores vivem, sem o saber, as tradições fenícias
O rio beija-lhe as faldas e as rochas em que assenta a pinha do casario, todo caiado de branco. Oito mil portugueses ali vivem e mourejam, entregues ao comércio, à vida administrativa e aos reflexos da vida de lavoura. É terra pobre e modesta, asseada e pacifica, porque é ordeiro o seu povo. O trigo e a cevada são tradicionalmente as culturas da terra. Mas as crises consecutivas têm levado o povo, orientado pela Direção dos Serviços Florestais, a encaminhar os seus desvelos para o culto da árvore. Depois, o povo sonha que um dia apareceram por ali os engenheiros de níveis e fitas de agrimensor a dizer que ia agora de facto começar a barragem do Pulo do Lobo que fica a 15 quilómetros de Mértola e regularizaria o curso do Guadiana dando luz e energia para o estabelecimento de indústrias indispensáveis ao levantamento do nível económico da região. Mas o tempo foi passando e o projeto foi ficando em sonho. De vez em quando, veem chegar brigadas de engenheiros e outros técnicos: uns vão saber porque se extinguem as ricas espécies de peixe, desde a lampreia e o sável ao esturjão de que se faz o caviar e que, segundo se averiguou, dorme como lhe manda a Natureza, nos mais fundos, escuros e lodosos recônditos do rio, para este lado de Mértola; outros vão para estudar os problemas de abastecimento de águas; muitos lá foram para dirigir o plantio de amendoeiras e eucaliptos.
Nem sempre, porém, as consequências destas visitas teriam o êxito que os Mertolenses esperavam. Porque, se é certo que milhares de árvores têm sido plantadas pelos serros marginais do Guadiana, por outro lado o abastecimento de água está parece que demorado. Irão buscá-la ao próprio rio de águas doces, até muito abaixo do porto de Pomarão, depois de ser filtrada por um sistema que está orçado em 2 mil contos.
E este será mais um dos grandes benefícios para a gente, trazido pelo rio, de margens alcantiladas, inóspitas e abafadiças. Foram, por certo, o clima muito quente e as características da Natureza desajudada pelo homem, que inspiraram esta quadra de algum ceifeiro, graciosa e não isenta de malicia:
Alentejo não tem sombra
Senão a que vem do céu.
Abrigue-se aqui menina
Debaixo do meu chapéu.
A sombra que vem do céu é, naturalmente, a própria noite, refrigério de quem vem para a rua dormir, quando as estrelas vigiam o seu sono e o Sol vai queimar as cearas de outros hemisférios.
É triste, lenta e contemplativa esta gente da margem do Guadiana. Ama a sua terra que não deixa por nenhuma outra, mesmo nas horas mais negras. Quando a crise aperta, entre o fim das ceifas e o começo das mondas, a fome fá-la descer até à vila. Os homens ficam por lá, como estátuas da dor vencida, mudos, quietos, encostados às paredes, esperando que alguém lhes estenda a mão, enquanto elas partem de monte em monte, levando, às comadres ricas, novidades, mexericos, queixas e esperanças de ajuda, a troco de um «panito» inseparável do seu regime alimentar. Os lares instáveis flutuam sob a influência da faina agrícola. E como o corpo segue ao reboque da sorte, não entregarão, já agora, a alma a Deus. Ouvimos do prior:
- É o povo menos atento nos deveres da Igreja. Em parte, porque a falta de padres tem deixado a rebeldia ancestral sem assistência. Depois, porque o povo, tendo tanta necessidade de coisas materiais, descrê das necessidades espirituais. Talvez por isso, estão a ter grande êxito umas sessões publicas das terças-feiras, promovidas por uns suíços protestantes que apareceram no Algarve com o Plano Marshall. Têm dinheiro, distribuem-no, ganham adeptos. Ouvi a um alfaiate: Ora, então, porque é que não hei-de aceitar o protestantismo, dá-me mais do que a agulhinha...
Este amor ao dinheiro, aliás, não é cobiça ou avareza, mas a noção castigada do seu valor. A fome, porém, não roubará jamais ao povo a sua bíblica e humilde resignação: em quarenta e três anos passados atrás, registaram-se nesta banda do Guadiana dois únicos crimes de morte e nenhum deles foi para roubar; os carros de transporte anteriores à camioneta passavam de noite e sabiam que podiam deixar na estrada as encomendas destinadas a quem só de manhã fosse buscá-las.
A «função» do casamento
Hoje, porém, certos jeitos da terra vão perdendo o seu feitio. Da beira do Guadiana desapareceram a calça à boca de sino e o salto de prateleira. As moças vêm aos bailes e mercados, vestidas à «moda», os rapazes entram nas tendas e cafés e pedem um garoto ou um «carioca», muito «anchos» porque falam no calão da Brasileira e do Nicola...
Só nos montes que dão o trigo e a cevada, que o rio há de levar às fábricas de moagem e às seculares azenhas, será possível encontrar ainda alguma coisa de muito nobre da alma do Alentejão, pouco religioso, como se disse, árabe vencido sem se entregar aos conceitos da cristianização vencedora, mistura de rebeldia, orgulho e libertação. Os seus atos solenes, porém, quase sempre os regularizará diante do altar.
Namoram portas adentro da casa da moça, com o consentimento dos pais dela. E, se acaso o derriço não dá em casamento, o moço será na circunstância o «mal visto» e «comprometido». Mas se o amor põe o preto no branco, na igreja ou no registo, então a função dará muito que falar. No dia do casamento, cada um dos nubentes levará seu acompanhamento ao lugar da cerimónia. Finda esta, regressará cada um com os convidados à sua casa, fazendo cada qual a sua «função», sem lhe faltar o biscoito de manteiga e o jantar de couves, supremo luxo de cozido com hortaliça, na terra em que os legumes são para os senhores da vila e poucos mais.
E só no dia seguinte à assinatura do contracto se consumará a cerimónia, juntos os convidados e as funções, pagas avantajadamente pelos padrinhos, para que os restos cheguem às vizinhas, e às comadres, como chegam ao rapazio da rua os confeitos e os rebuçados atirados da janela.
Sentados numa cadeira, pacientemente, os noivos verão os outros bailar, até que o último convidado se retire o mais tarde que for capaz, só depois se trocando o beijo dos esponsais. E, entretanto, estará em exposição o quarto nupcial onde as comadres e amigas da nubente deixarão em dinheiro o que puderem para a colcha da noiva...
Como o homem de todas as latitudes, o pastor e o campaniço das margens do Guadiana são presunçosos dos seus dons e gabarolas. Veja-se, para exemplo, esta quadra graciosa que, sendo um modelo de contextura e de gramática, celebra a sua vaidade e o Vascão, rio que lhe passa ao lado, desagua no Guadiana e separa, adiante de Pomarão, as províncias do Alentejo e do Algarve:
No Vascão há uma ponte
Tapadinha de eloendros.
É por ela onde passam
Os rapazes Mertolengos.
Mertolengos é como a si próprio se chamam os do povo Mertolense, da beira do Guadiana...
Gentes na margem do Guadiana
Disse-se que o concelho de Mértola é dos mais pobres da beira do Guadiana e é verdade. O homem mal vive à sombra do monte patronal, como pastor ou rural entregue ao cultivo das «folhitas», bocados de terra que ressoarão a 3 ou a 4 por cento, conforme o ajuste em tempo; se for pastor, receberá o pegulhal parte em ovelhas e lã, para paga do pastoreio nos serros e nos pousios, ou seja, na terra que repousa, ano sim, ano não, da cultura do trigo e da cevada.
A terra está esgotada por crises sucessivas e os homens vencem a fome sem conseguir vencer as crises. Muitas vezes voltam os olhos para o rio que os barquitos, botes, canoas e lanchas sulcam para baixo e para cima. Se fosse desassoreado, outro seria o seu destino. Poderiam fazer-se muitos fretes em barcos de certo porte, que levassem menos tempo e ficassem mais baratos, eles que já hoje sentem a concorrência da camionagem. Cada passageiro paga 15 escudos de Mértola a Vila Real de Santo António; a camioneta que demora três horas menos no caminho, leva apenas 20$50.
Depois, as esperanças dos Mertolengos não estão unicamente no Guadiana, como meio de transporte, mas também como fonte da sua alimentação. Sobretudo, quando os montados se despovoam das grandes varas de porcos e a sua carne perde a confiança do povo, é para o rio que se volta, à procura do conduto.
A esta hora, «já era para irem angariando», embora a força do peixe apareça por abril e maio. Mas a Mina, com as águas sulfurosas das suas represas, tem afugentado o peixe que em dias de grandes cheias aparece nas margens e na foz do Guadiana aos montes, feito cadáver e aproveitado para comida de pobres...
Pescam ao anzol e à rede ou estremalho, aventurando-se às vezes, até às bandas de Alcoutim. Os barcos são a sua casa de lavagantes, embora cada um tenha no bairro dos pescadores que nada tem que ver com os bairros da organização corporativa o seu lar pobre, limpo e singelamente enfeitado como todas as casinhas humildes de Mértola. De dia consertam redes, no velho bairro anichado nos recôncavos do castelo; de noite aventuram-se pelo rio. Serão ao todo, os profissionais, cerca de trinta pescadores, representantes dos seus avós fenícios. Os outros, os amadores, não têm conto.
Mas nesta luta de vida ou morte pelo sustento dos filhos, o homem não será sempre leal. Se um companheiro do barco vizinho se deixa dormir, o outro salta para as suas águas e aproveita a maré de peixe. Assim vivem, silenciosos e tristes, sem cantares que espantem o peixe, meses inteiros, os pescadores do Guadiana, com a mulher e os filhos a seu lado na lancha, protegidos das chuvas invernosas pelos encerados. E assim ganham o pão de cada dia para a açorda de poejos, o café e algum feijão, que lhes servem de base alimentar. Ganham, numa boa época, 8 ou 10 contos, que depois desgovernam, porque os pescadores daqui até à foz do Guadiana e desta por toda a orla litoral, gastam quanto têm, sem olhar ao amanhã.
Mértola
A estes meses de fartura, que se avizinham, outros se seguirão de crise e fome. O peixe que hoje lhes dá para comer e levar a vender, de monte em monte, rareará em seguida. Os barcos cada pescador tem em regra dois, um para a pesca e outro para «o auxilio» recolherão aos pequenos areais das margens do Guadiana. As mulheres voltarão com o marido e os filhos ao lar, às vezes com a família aumentada, porque ali mesmo, no barco, chegam a dar á luz.
Olhando as suas ruínas o castelo, sem lendas de moiras encantadas, em que se encrostam as casas acessíveis por três ou quatro degraus, ao gosto árabe, para proteger as soleiras das inundações do rio, a sua igreja, supomos que românica, e os arcos semidestruídos, elegantíssimos, rentes á muralha e pertencentes a uma velha ponte romana ou a um cais da mesma época o povo espera resignadamente que alguma força nova o reconduza ao seu antigo destino, quando a terra se chamava Mírtilis ou mais tarde Mirtolah. Os pescadores fenícios, muito loiros, finos e de olhos azuis, como anglo-saxões, e os morenos maiorais e rurais das searas semeadas pelos árabes, deram hoje a mistura de sangues e de temperamentos do povo Mertolense, que também tem as suas horas de folgar.
Pelas feiras, aparecem de véspera as alcoutenejas dizem-lhes o nome depreciativamente com uma mesa tosca, uma garrafa de aguardente, copinhos de vidro, um prato de suspiros ou dois figos secos, um candeeiro sujo de petróleo e alguns caixotes de sabão servindo de cadeiras. Começam a petiscar, a beber e a cantar e assim passam a noite, até ao dia da feira, os Mertolengos muito dados aos «despiques». Cantam na sua voz arrastada e entrecortada de requebros, a vida, o amor e os ridículos dos amigos. Porque, nestes «despiques» ou cantares ao desafio a «licença poética» tem, aqui, na verdade, uma liberdade critica que nenhuma outra circunstância permitiria.
Essa critica, de sabor atrevido e vicentino, exerce-se, aliás, não apenas sob os auspícios das matronas alcoutenejas, mas também sob a arguta inspiração de Baco, à porta das tabernas, sobretudo nos dias de jornal ou de descanso. Cantam a duas vozes, sem que os guie outro dom que não seja o seu instinto. E colocam-se tão bem que dir-se-iam ensaiados por mestre de cidade. À sua volta a «família» dá palmas, ri-se e comenta, se os cantares são ao despique; acompanha se cantam a duas vozes, de pé, em semicírculo, de braços passados pelos ombros dos companheiros, dando passadas à frente e atrás... E assim os deixaremos a cantar, que diz a sabedoria das nações que quem canta seu mal espanta... Não é por simples acaso que no Baixo Alentejo o povo diz sentenciosamente:
P'ra tocar, o Algarvio
P'ra Fandangos, Ribatejo
P'ra campinos, Borda d'Agua
P'ra cantar, o Alentejo!
Não é legal mas também não é imoral aos olhos da gente da raia
Deixemos a vila de Mértola, andorinha alvi-negra, alcandorada, nos beirais das rochas e na muralha do seu castelo milenário, a debruçar-se na borda do Guadiana, e vamos para a Mina de S. Domingos, não porque a terra aqui se debruce sobre o rio, mas porque ela é a razão de ser do porto de Pomarão e constitui a primeira fronteira da região.
É uma terra igual e diferente, esta que os olhos já não podem abarcar. Se Mértola surpreende, em plena charneca, como terra de «marítimos», aventurando-se até aos areais do oceano, a Mina sugestiona pelas características morais da sua gente, feita de um húmus psicológico de origens contraditórias.
Também aqui a charneca de Florbela Espanca impõe a sua fisionomia. Os campos verdes das searas breve serão devorados pela ardência do Sol e tudo ficará rubro e amarelo, tisnado e contorcido até que outra vez as chuvas torrenciais reverdeçam os montados. E o próprio povo, mescla de árabe e berbere, feito com sangue de turcos, ingleses, franceses e espanhóis. Os seus próprios apelidos o revelam levados para a Mina, quando os naturais se recusavam a trabalhar fora do amanho das terras, até esse mantém as admiráveis virtudes do homem da planície, não obstante ser de mineiro e não de camponês a sua profissão.
Doze mil pessoas vivem na povoação que se formou à roda da Mina de S. Domingos
Mina de São Domingos (Edição Costa)
Há cem anos é verdade ainda o Alentejão se recusava a vir para a Mina que é hoje o seu Eldorado. Por muito altos que fossem os salários que lhe acenassem, o homem da charneca mantinha-se-lhe fiel. Foi preciso, por isso, fixar gente de todas as proveniências, alguma fugida á lei, outra sem contas prestadas á justiça. E ao contrário do que seria de esperar, desses homens dominados pela necessidade de resgate, pela dureza dos trabalhos e pelo peso dos calores, saíram bons portugueses, no contacto da gente boa que ia chegando lentamente dos montes. Foi como se o homem da Mina e o homem do campo vertessem o seu sangue nas mesmas veias, nas mesmas lutas e dores. Os salários desceram, em significado económico, 80 vezes em relação ao que foram há 50 anos. Mas o mineiro, seguindo a curva do fenómeno universal, não protesta e adapta o seu corpo à realidade económica, assim ficando, no sentir e no pensar, um autêntico espécime do campo.
A Mina dá-lhe, aliás, condições de vida em muitos aspetos superiores às criadas pela lavoura e até pelo Estado. Assim o diz um mineiro, comparando os salários na Mina, entre 22 e 35 escudos com os ganhos de 16 escudos na estrada ou idênticos, de sol-a-sol, no campo, menos de meia dúzia de meses por ano e sem os «auxílios» de carácter clínico, de habitação, recreativo e alimentar, concedidos ao mineiro.
Ainda acerca das condições de vida dos trabalhadores da Mina, 1.400, distribuídos pela contramina, pela fábrica de enxofre, pelas oficinas, pelo porto, pelas «covas» e pela via e obras colhemos pormenores curiosos, como este, por exemplo, sobre alimentação.
Aqui há anos, a Mina tendo em conta o fraco grau alimentar do povo estabelecido à sua roda -cerca de 12 mil pessoas, todas a cargo dos 1.400 trabalhadores e operários- resolveu criar uma sopa económica, forte e substanciosa, de que se abasteciam também os engenheiros, para dar «exemplo». Escusado será dizer que essa sopa, além de boa era barata, coisa de 20 centavos por pessoa. Pois, a experiência durou apenas três ou quatro meses. A sopa acabou, porque o mineiro, habituado à sua alimentação tradicional, o pão migado na água, se recusou a entrar em aventuras gastronómicas...
A Mina, que no princípio quis estabelecer certos hábitos do «week-end» inglês, viu, aliás, fracassar outras das suas iniciativas. Começou por construir pequenas casas destinadas aos mineiros, na esperança de que ao sábado estes fossem pelos montes, ao encontro dos seus. O português, porém, é agarrado à mulher e aos filhos dados à luz, de pé, como os berberes. Sentia a nostalgia da sua ausência. E hoje um, amanhã outro, foi trazendo os parentes mais chegados, instalou-os a seu lado e as construções não foram adaptadas às novas circunstâncias.
Perguntamos, por isso, a uma mulher como se arranja, com o marido e os seis filhos nas três divisões da casa dois quartos e uma sala-cozinha e ela explica, numa fórmula tradicional, que é a própria legenda da charneca:
- Eu com as fêmeas para uma banda, o meu homem com os machos para a outra...
Nenhuma crise, nenhuma sugestão, vinda de fora teriam força para arrancar à Mina a sua população mineira, tão entranhadamente agarrada ao seu torrão, como aqueles que, na charneca, na lezíria ou na courela, fazem o amanho da terra. O seu amor tem aspetos sentimentais que se revestem de tintas de dramatismo. Se a Mina os dispensa, ficarão por ali entregues ao seu destino até à readmissão; se procura dar-lhes um outro destino, teimarão em não mudar. Aí por 1940 ou 1941, a crise foi terrível, porque não havia barcos que levassem a pirite pelos mares ocupados pela guerra. A empresa entrou em acordo com a Urgeiriça e o Lousal, falou com os homens a quem não poderia dar trabalho, pagou-lhes as passagens e foi pô-los onde pudessem continuar a lutar pela vida, senão para sempre, pelo menos enquanto a crise não mudasse...
Mas os homens sentiram que o seu lugar era ali, junto dos seus, na terra que ajudaram a fazer e onde sempre trabalharam a Mina de S. Domingos, que podia dar-lhes fome, mas jamais esquecimento, ingratidão. E, dias depois, voltaram, para o que desse e viesse...
O que veio não deu tanto como queriam ou mereciam. A Mina foi-os readmitindo, não em regime efetivo, com os encargos inerentes à empresa, mas em regime moderado. Tal como noutras empresas - nas conserveiras de Vila Real, por exemplo - esses, que serão hoje menos de 200, trabalham apenas três dias por semana, só assim sendo possível, no critério administrativo, dar a todos o mínimo do que não podem dispensar...
Neste singelo apontamento, parece que nos afastamos do verdadeiro carácter destas reportagens. E, todavia, para se dar o comportamento de um povo, nada há como dá-lo nesse meio em que ele se comporta.
Passaremos, porém, sobre os problemas mais ou menos à vista, para buscar na raiz do viver desta gente, alguma coisa da alma popular.
A Mina é a primeira localidade arraiana, paredes meias com o Guadiana. Deste, porém, que passa a 17 quilómetros, em Pomarão, nenhuma reminiscência se encontrará no falar - 300 vocábulos diferentes dos outros falares aqui foram recolhidos - nos costumes e cantares, talvez porque o belo curso de água passa pelo seu porto internacional na sua distância mais próxima, «entaipado» pelo seu porto internacional.
Aqui, o «rio da Mina é o Chança, ribeiro grande que lhe passa a hora e meia de caminho a pé, afluente do Guadiana e que separa Portugal de Espanha. É ali, no Moinho da Tábua, que eles pescam saboga e elas lavam roupa, uns fazendo lugar o «hiterland» de contrabando e até, de certo negócio «legal»!.
De manhã cedo, para só voltar pela noite, as mulheres partem de cesta à cabeça com as roupas para lavar e o seu quilinho de café, açúcar, grão ou tabaco. Às vezes, se a encomenda é maior, levam-na ao colo, como se fora o menino embrulhado no xaile, e deixam-na entre fráguas ou nos cestos das espanholas que aparecem aos sinais combinados. Este é o comércio ilegal-troca de géneros alimentícios de que a Espanha tanto necessita, por alguns metros de seda ordinária, alparcatas de solas de borracha emendadas, garrafinhas de «Domecq» ou frascos de perfume, sabonetes e pó de arroz, que depois farão carreira em Portugal...
Mas, há ainda um outro negócio e este, por ser «legal», não deixará de ter também os seus lances imprevistos. Na Mina, como de resto em quase toda a margem do Guadiana e na charneca do Alentejo, não há lenhas para as lareiras, por muito reduzida que seja a sua produção culinária. E para lá, do outro lado da Andaluzia, sem casas nem lareiras que a consumam, sobra a esteva de que daqui necessitam. Entre os dois lados da fronteira estabeleceu-se um certo acordo tácito que permite aos portugueses atravessar o Chança e ir colher em Espanha as estevas e os ramos de azinheira. Às vezes, porém, não é possível e lá vem o aviso intimativo de algum carabineiro. Outras vezes, quando os molhos estão prontos para seguir, são requisitados para o posto mais próximo, distante quatro quilómetros além da fronteira. E não há remédio, se não andar mais esses quatro quilómetros, em cima de dezessete já percorridos, para não se perder tudo...
Que não fará, na verdade, esse pobre português, com três dias apenas de trabalho na Mina, ou a mulher para garantir esses 7 mil e quinhentos da lenha! Deixou o filhinho em casa entregue a uma vizinha e só de pensar nele e ao que possa suceder-lhe «corre-lhe o sangue das algibeiras».
Por isso irá, de molho às costas, se não tiver um jerico que a ajude. Porque, então, precisará de uma «licença» que não é «licença». É um bilhetinho passado pela autoridade e diz assim: «a portadora parece-nos de confiança. Pedimos que a vigie e veja se ela a merece»...
Os dramas das relações entre os povos arraianos, os do contrabando e os da caça aos contrabandistas, ficarão para sempre por contar, por mais que as suas cores de inquietação, aventurosas e aliciantes, sejam reveladas. Páginas que dia-a-dia se renovam, como hão-de elas fixar-se?
No caminho de Serpa, encontramos um homem que diz, quando lhe apontamos as dobras cúmplices dos montes:
- Não, senhora, o contrabandista é valente, entra de caras e mete-se ao caminho, sem olhar aos seus feitios. Além de que não vale a pena. Ainda há uma dúzia de anos, ali para Aldeia Nova de São Bento, dez homens e um cavalo tiravam para os riscos que passavam. Agora, o contrabando está muito por baixo. Poucos se arriscam por 200 ou 300 escudos...
Sabe-se que sem deixar de ser assim, a verdade tem ainda outra metade. Na Mina, sobretudo, há contrabando quando há crise de trabalho. Então, aparece um aliciador que desce ao povoado como os lobos, a soldo de um «maioral». Se a crise é realmente grave, os homens deixam-se seduzir por 25 escudos por noite. Se a fome não cava fundo nos estômagos, então fazem-se rogados e não cedem por menos de 40. Pela noite alta, são convocados para lugar ermo onde vão encontrar o contrabando e o seu aliciador. Partem, então, em fila indiana, de saco às costas, algumas vezes carregado de volfrâmio ou de tabaco e quase sempre de café, o que dá, não obstante o seu preço elevado em Portugal, mais garantias no comércio. De rastos, cosidos com os arbustos e as agulhas xistosas, vencem as margens do Chança e o seu leito, a vau ou às poldras, consoante o mês do ano. Vão silenciosos, de ouvido atento á escuta. Os seus próprios passos os sobressaltam, o rastejar do lagarto ou o salto da saboga os fazem estremecer, o seu hálito os confunde...
É que, no silêncio subtil da noite, tudo tem o som cavo de um aviso ou do dobre a finados... De repente, quando tudo parecia já vencido, ergue-se detrás de um barranco «um pára aí, mãos no ar!».
E, às vezes, nem a voz do homem se ouvirá…
Há tempos, foi apanhado em flagrante um grupo de contrabandistas, que deram entrada na cadeia de Mértola. No dia seguinte, as águas claras do Chança avermelharam-se com o sangue dum português varado por uma bala sem aviso.
São diferentes os modos de atuar. Depois da guerra de Espanha, a Guarda Civil é dona e senhora de pistola-metralhadora que lhe deram; a Guarda Fiscal é responsável pela espingarda e pelas munições que lhe confiaram. Eles poderão despejar as munições que ninguém lhes perguntará onde e porque é que o fizeram. «Nós» teremos de elaborar um relatório, por cada bala que falte no cartuchame, pagando-a do próprio bolso, se se provar que foi gasta contra os interesses do Estado...
Por isso perante maneiras tão diferentemente humanas de defender os cofres públicos, o contrabandista saberá, acima de tudo, que aquilo que interessa em primeiro lugar ao guarda fiscal não é a sua vida, mas a sua carga. E, por isso também, logo ao primeiro sinal - um tiro dado para o ar - o contrabandista destas bandas, menos atrevido e destemido que o do Norte e, ao contrário deste, menos profissional, abandona o contrabando e deitará a correr. Na impossibilidade de apanhar a carga e o carregador, o guarda decidirá pela primeira, enquanto, oh!, pernas para que vos quero, o contrabandista se perderá tragado pelo escuro nas profundezas da noite solitária e cúmplice...
Na sede da Guarda Fiscal da Mina como os restantes postos das proximidades e o quartel da G.N.R., bom edifício construído pela empresa que os aluga às vezes a três escudos por mês há sempre um espólio largo e modesto dessas apreensões para serem leiloadas. E é por causa destes leilões que a Guarda Fiscal se confunde perante o número atrevido de vestidos de seda garrida e xailes de seda bordados que aparecem nos dias de festa grande...
Todos, aliás, ali fazem ou protegem o modesto contrabando. Uns para que amanhã também sejam protegidos, outros por que a própria vida de contrabandista, de tempo anterior à vida de contrabandista, de tempo anterior à «Carmen», é a mais romântica aventura de um povo aventureiro sem dinheiro para lances mais brilhantes, menos arriscados e menos dispendiosos...
A não ser por despeitos ou despiques pessoais, jamais alguém se terá posto da banda da Guarda Fiscal. Se a encontram nos recôncavos de um serro ou no dobrar de uma vereda, qualquer um passa palavra, pelo sim pelo não, mesmo sem saber se ela é oportuna:
- Vi ali além a guarda...
Algumas vezes, porém, entre os grupos de contrabandistas, os que foram denunciados, ou, do alto, os «maiorais», estabelecem-se rixas, partidos e rancores. Aqui há tempos, um dos grupos foi esconder o contrabando entre as estevas e as pedras da estrada de Serpa. Os do outro grupo viram e foram por ele- em hora de triste sina, porque apareceu a Guarda Fiscal que não deu cem anos de perdão ao ladrão que tinha roubado a ladrão...
Tantos riscos, tantos sobressaltos, se eles sabem que além da apreensão terão de pagar seus crimes na prisão... Talvez por isso, não são frequentes os «flagrantes delitos». Como que existe um respeito tácito entre os contrabandistas e a Guarda Fiscal que põe, acima de tudo, a defesa dos interesses do Estado.
Veremos, no decorrer desta viagem, ao longo do Guadiana, como vão correndo as coisas...
Porto do Pomarão
Pomarão fica a 18 quilómetros da Mina e a 27 milhas de Vila Real de Santo António. Nasceu há cerca de um século, quando a Mina de S. Domingos abriu novas e ricas perspectivas a esta região. Se na Mina findassem as explorações de pirite, Pomarão não teria razão de existir. Hoje tem duas pontes a que os da terra chamam o cais e nelas podem atracar, ao mesmo tempo, dois barcos de 4 mil toneladas. Seiscentas pessoas ali vivem exclusivamente deste pitoresco porto fluvial, a que falta a luz elétrica a mais próxima é a da Mina mas que tem posto escolar, escola infantil, telefones públicos e mala de correio. E se não tem telégrafo, foi porque este, de exclusivo interesse para a Mina, deixou de ser necessário, desde que S. Domingos ficou ligado a Pomarão telefonicamente. Se hoje se fala com os naturais, sente-se que uma só aspiração os domina: a construção da estrada Mina-Pomarão, que ligaria este centro de comunicações fluviais não apenas a uma dezena de outras povoações, mas a todo o coração do Alentejo. Por isso, todas as conversas vão dar sempre, irrevogavelmente, ao mesmo sítio:
- Mas a estrada para a Mina, sabe, essa é que nós queríamos...
Temos de seguir para Pomarão, mas falta a via fácil que nos leve. Não há estrada, mas caminhos ínvios. Uma linha férrea privativa leva as 200 mil toneladas de minério arrancadas anualmente à Mina. Essa linha férrea mede 17 quilómetros e o minério passa em vagonetas acionadas por alguma das 13 locomotivas pertencentes à Mina. Simplesmente, este caminho, desde que há uns doze anos ali se deu um desastre que matou dois homens e deixou outros três muito «lastimados», o Governo proibiu a sua utilização por quem fosse estranho ao transporte do minério e do enxofre. Exatamente como esses centos de pessoas que ainda hoje, gratuitamente, sobem e descem o Guadiana, nos barcos que demandam Pomarão, também este comboiozinho de brinquedo servia muita gente das oito ou nove povoações por onde passa, através de uma linha que atravessa sete tuneis, dois dos quais perfuram, inteirinho, um alto serro.
A auto-zorra silva alegremente através da planície alentejana, onde por toda a parte os marcos brancos assinalam os limites da concessão e das propriedades anexas, adquiridas pela Mina, ao todo 2.137 hectares, 900 dos quais por cultivar ou sujeitos ao regime florestal. A paisagem, aqui e além deformada nas suas tintas pelas águas sulfurosas que provêm da mina ou se dirigem para a fábrica de enxofre, é toda ela de uma árida e impressionante fisionomia. Pontes de xistos aguçados de um branco-sujo de cinza, ergue-se para o céu, como se pedissem perdão. O leito descarnado de uma ribeira sem água lembra um matagal de cactus espinhosos. A terra é seca, de lava, as azinheiras e os eucaliptos rompem num esforço supremo contra a natureza e até a graça das margaças brancas, pulcras, imponderáveis, que florescem nos charcos como as anémonas nos lagos, encobrem, na inocência do seu corpo, o veneno mortal da sua natureza...
Na ponta desta linha de caminho de ferro, está o rio e o porto de Pomarão que vem nos mapas nacionais e estrangeiros, mas que bem poucos portugueses hão de conhecer. Nasceu num dedo da terra portuguesa, na confluência do Chança com o Guadiana que, dali em diante, dividirá e juntará dois povos e duas pátrias diferentes.
Que mancha de casario alcantilado, branca e imprevista, que coisa de brinquedo tão engraçada é este porto de navegação internacional, escondido numa dobra da charneca alentejana! Por sua causa, há um posto de pilotos, todo pomposo, à entrada de Vila Real, por sua causa é que viemos ao Guadiana...
Lembra um altar de presépio e é, afinal, um milagre da Mina que o criou e alimenta. Por ele passam valores de importação e exportação muito superiores a 30 mil contos. Barcos de todas as nacionalidades ali vão buscar 120 mil toneladas de pirites. Os portugueses, além destas, levarão das 80 mil toneladas de enxofre - extraído na Mina - aquele que não circula pela estrada de Serpa, hoje quase intransitável, porque há dois anos aguarda que o Estado a conclua. Barcos que são, às vezes, de 4 mil toneladas, se não tiverem mais que 88 metros de comprido, são esses os que demandam Pomarão, uns dez a doze por mês, fora, naturalmente, os mais pequenos, porque esses somam centenas em cada ano.
Cem homens ali trabalham normalmente, mais cinquenta sem regime de contrato. Os primeiros têm o ganho certo de 22 escudos, os outros, que trabalham de empreitada, só quando há embarques e desembarques chegam a tirar aos 40, de acordo com a quantidade de zorritas que encherem e despejarem.
Trabalhadores do Pomarão
Vivem aqui à volta de 600 pessoas nos 150 fogos de que se compõe o lugar. Embora mal instalada, há escola, jardim escolar, telefones com cabina publica, mercearias, um café, duas tabernas, barbeiro, uma sociedade recreativa e outra de socorros mútuos. Vive por si, ou antes, pela Mina, esta terreola que figura nas escalas dos caixeiros-viajantes, mas que não tem três coisas essenciais: uma pensão, uma estrada que a ligue a São Domingos e um cemitério, estas duas de grande utilidade para os vivos, que terão de carregar os mortos dez quilómetros sobre as costas ou a pulso, através de maus caminhos vicinais, até Santana de Cambas...
Ainda aqui se estende, naturalmente, o poder temporal da Mina. Os seis ou sete barcos que diariamente demandam Pomarão trazem carvão de pedra inglês, madeiras de Viana do Castelo, pedra calcária de Vila Real, para a preparação do enxofre, trigo das searas de Mértola para as masseiras do porto e das povoações à sua roda.
Toda aquela estreita faixa alcantilada tem a cor, o movimento e o feitio dos pequenos portos marítimos. Às vezes, estão dois barcos de 1.800 toneladas encostados às duas pontes que constituem o «cais de Pomarão, enquanto um terceiro aguarda a vez de encostar. Durante toda a noite, visto que uns trabalham de empreitada e outros dentro dos três turnos de laboração contínua, o porto é um vaivém de locomotivas, uma febre de movimentos, apitos, trepidações e gritos que constituem a música de fundo estonteante, nas horas em que a população, sem obrigação de vigília, dorme na paz dos justos...
Visto do «palacete» da Mina, vasta construção de pedra e cal, com divisões interiores feitas a tabique, muito caiadas esse movimento evoca outras urbes, outros povos tão distantes deste aglomerado perdido na terra erma e cuja gente se parece tão pouco com a que vive nos cais marítimos desse mundo além. É educada, discreta, o seu falar já está mais perto do algarvio do que do alentejano. Jamais o terão ouvido gritar um nome feio, nem mesmo quando dialoga com os nortenhos de vocabulário impetuoso que a visitam. Não anda descalça como os homens do Norte, tem a compostura discreta do homem simples do campo. E é tão honrado e respeitoso dos haveres alheios, que quando chega ao «palacete» algum convidado da Mina, deixam-lhe as portas da rua e do quarto abertas, para que ele não receie ficar em casa sozinho...
Também aqui o problema das habitações é grave e emaranhado, A Mina não parece disposta a fazer mais casas para uma população que amanhã terá de se ir embora, se as reservas de minério se extinguirem. Há ali foros de 1 centavo - um centavo, não é gralha - que, por ser tão pouco, se acumulam alguns anos, para se passar recibo... No entanto, a média dos alugueres é de 6 escudos por cada divisão, ou seja, cerca de 18 a 24 escudos por mês.
A vida que ali se faz é simples, de trabalho e sem as alegrias do mundo em que vivemos. Não há cinema e só um homem, o dono do «Negus», no café, terá as primícias de alegrar aquele cabo dos trabalhos. Mas como são poucos os que podem dispor de dez ou quinze tostões pelo direito à partida, a maioria limita-se a ver jogar o chefe dos escritórios, os comandantes, os imediatos e os pilotos dos barcos que vão chegando. São eles os que trazem as novidades do dia, que falam de outros mundos e de outras gentes. Enchem de alegria e movimento o cais e toda aquela pequena faixa de terra, onde as sugestões exteriores, trazidas pelo Guadiana, não chegarão para os conduzir a uma bela aventura de imigrantes. Aqui, também eles são irmãos do alentejano. Mas se lhes falam destes, negar-se-ão a reconhecer-se serrenhos, pois se dizem e sentem já algarvios.
A sua vida é o mar do Guadiana. O seu modo de ser começa já a ser de marinheiro. Ao rio, na verdade, devem o emprego dos braços, ao rio vão buscar grande parte do alimento, pois ele leva aos espanhóis o pão que não lhes fizer falta.
E esta é, realmente, a feição nova da reportagem, porque o contrabando em Pomarão não se chama contrabando, mas comércio entre portugueses e espanhóis, feito ao cambio marcado pelo jornal da véspera. As espanholas descem dos lugarejos mais próximos da raia e distantes das suas urbes mais povoadas, e vão ali às compras, compras de pobres, meio quilo de grão, um pão, um pouco de café, 250 de açúcar como quem desce do Bairro da Serafina e vai a Campolide. E é tão natural e tão fácil o acesso nas lanchas que a toda a hora atravessam a confluência do Chança e do Guadiana, tão normal, no Verão, a passagem a pé seco, que os próprios carabineiros todos os dias vão ali abastecer-se, com seus saquinhos de riscado suspenso das mãos e as malas a tiracolo.
Todos os veem passar, pela manhã, contentes quando brindam os portugueses com um perfeito «bom dia». E todos hoje se lembram, olhando na outra margem as ruínas dos antigos fornos de pão, quão vário é o destino dos homens e quão vária a vã fortuna de que falou Camões. Há trinta e quatro anos, eram os portugueses, saídos da guerra, que faziam aquele mesmo caminho fronteiriço e iam solicitar dos espanhóis a graça de lhes venderem pão...
O comércio faz-se, naturalmente, sob o olhar humanamente complacente dos homens de fato cinzento e fato azul-verde. Mas às vezes a própria autoridade, no regresso das suas compras, vai-se esbarrar com as espanholas que percorreram o mesmo caminho. Revistam-lhes as cestas e, para dizer alguma coisa, mandam-nas lá pôr isso outra vez...
Elas sabem, entretanto, que lhes bastará torcer uma volta e seguir o seu caminho, para que a sua mesa de pobres se enriqueça da modéstia das suas compras...
Nem só este comércio, às claras, se faz, entretanto, entre Pomarão e a margem espanhola. Dizem que à custa dos aldeanos comem os castelhanos e os contrabandistas aproveitam-se da maré para fazer o seu negócio numa escala mais larga. Alguns pagam com a vida a ousadia. E ainda há poucos meses, todos o recordam ali, com amargura, um espanhol que regressava a Espanha com o seu carregamento de volfrâmio, ficou empapado no seu próprio sangue, quando, de rastos, subia a encosta da hacienda de Malpique, uma propriedade adquirida pela Mina, porque a Espanha reclamava que as águas das represas, nos dias de inundação, lhes destruíam as culturas minguadas, próprias da terra pobre que ela é...
Por ali passam eles e elas, das duas margens do Chança, descalços, arregaçados, confundidos com a noite, o rumorejo das águas alcoviteiras e o latir dos cães das duas margens. E eles e elas não são sempre os que fazem contrabando, mas homens e mulheres em função de um fenómeno local, este, porém, de um sentido económico mais profundo.
Todos os anos, duas vezes na época, aparecem os manajeiros que percorrem o concelho de Mértola e toda a orla do rio até á ponta do Algarve. Vêm por conta de fazendeiros espanhóis, do outro lado, do Xerez, onde os esperam milhares de figueiras para que os braços portugueses as vão aliviar do peso do seu fruto, ou o fio doirado das searas que não sabem de melhores braços que os acarinhem. Então, indocumentados, coitados, os documentos custar-lhes-iam mais que os próprios ganhos, para cima de seiscentos algarvios e alentejanos, contratados pelos manajeiros, passam aos ranchos de vinte, pelo Pomarão. Descem pela tardinha, dos lados de Mesquita, ali defronte, alugam as lanchas a 1 escudo por pessoa que os trará da outra margem do Guadiana, abancam pelas tabernas à volta de uma mesa, pedem vinho para acompanhar o pão que trazem numa lata e descalçam dos pés sem meias as botas, importunando a vizinhança...
Ninguém lhes pergunta quem são nem para onde vão. Todos sabem que os seus voos migratórios se assemelham e cumprem como os das andorinhas. Mas, talvez por isso mesmo, sentem-se os pobres na obrigação de espalhar aos quatro ventos que se dirigem para as ceifas no Alentejo...
De junho a julho vão sós, para fazer as ceifas em Espanha. Um mês depois do regresso, voltarão com as mulheres e os filhos. mesmo os pequenos de colo, para colher os figos nos campos de Xerez. Ganham pouco, sempre ao sabor do cambio da peseta, têm já patrões certos de anos para anos que não querem outros braços que os ajudem na fortuna, e fazem lá a sua vida triste de ciganos. Sem lar, dormem no chão, sob a copa das figueiras e azinheiras. Sem mais onde o ganhar no regresso, amealham quanto podem, sustentando-se, homens, mulheres e crianças, a pão e figos, mais nada.
Às vezes, alta noite, na partida, topam com a autoridade pelo caminho. Vão para as ceifas - dizem - mas o caminho das ceifas não se faz por ali... A vigilância fá-los voltar atrás, ranchos de malteses infelizes sem um caminho com porta aberta para os lados da ventura....
Por isso eles dão uma volta nas costas da autoridade e prosseguem na viagem tacitamente consentida, porque também, do outro lado de lá, os espanhóis farão a vista grossa, de acordo com os «terratenientes» seus patrícios...
A complacência, porém, não é agora nem nunca de fiar. Às vezes, os Portugueses estabelecem boas relações com os carabineiros fronteiriços. São amigos, visitam-se, um belo dia, começam com sua licença a aprofundar a sedução de terra espanhola e caem nas mãos da autoridade. Assim foi com um português, um engenheiro da Mina, Tinha a paixão de possuir um harmónio e disse-o a um amigo, do posto próximo que lhe passou um «bilhetinho» de recomendação para um colega. Mas quando o português descia em Huelva, contente, porque ia ter o seu harmónio esperava-o a autoridade que lhe pediu a documentação....
Um guarda, inimigo do sargento, fizera a denúncia. O sargento foi castigado e transferido, o engenheiro ficou meses e meses na prisão...
Navio "África Ocidental" no Porto do Pomarão
...E agora é tempo de continuar viagem. O «Africa Ocidental» carregado de pirite para a C.U.F., está pronto para levantar ferro.
O Guadiana terá ainda outros segredos que contar, outras coisas que dizer dos costumes e das gentes que separa e reúne ao mesmo tempo, nos seus falares e cantares.
Há tempos, na Mina de São Domingos, esteve um engenheiro português, muito dado à curiosidade dos falares locais. Recolheu 300 vocábulos ali usados e aqui, em Pomarão, de origem espanhola ou inglesa, uns de feitio português, outros com significado fora das leis marcadas pelos dicionários.
Nós que não fomos com intuitos tão profundos, aqui deixamos quatro dizeres assinalados na reportagem, sem registo no dicionário.
Se uma mulher caiu com uma tontura, deu-lhe um badagaio; se ficou tonta, mas se aguentou nas pernas, teve apenas um almereio. uma criança é traquina, santo Deus, que baldofeira; se a moça toda se enfeita, olha aquela, como vai adoeirada...
O «África Ocidental», todo taful e engraçado, já lá vai a deslizar nas águas mansas e ainda se ouve, no cais, um velho e bem ginasticado pescador a apregoar:
- Quem quiser peixe muge, quem quiser que venha à baixa... Quem quiser, quem quiser, é só a 5 escudos o quilo... Quem quiser... peixe muge!
Peixe muge, é a tainha...
Alcoutim
Alcoutim é o primeiro cais português, para quem desce o rio, a partir de Pomarão. Até ali, tudo naturalmente são recursos naturais. Os barquitos das velas empavesadas encostam-se onde há rampa que varar ou olhos fiscalizadores que os não vejam. É uma vilazita engraçada, alcandorada nas margens do Guadiana, mesmo ali debruçada sobre o espelho das suas águas. Pelo contrário, Castro Marim, fugindo aos seus esteiros e salinas, ficou uma légua recuada para lá do rio. E se já hoje Alcoutim pouco vale como porto marítimo, Castro Marim viu morrer as suas últimas realidades quando Pombal transferiu mais para o Sul o seu entreposto internacional. Hoje, Alcoutim olha melancolicamente o Guadiana e as gaivotas que os temporais enxotam para os mastros dos seus barquitos à vela. O porto serve as populações marginais e do interior e carrega e descarrega os produtos da sua indústria e da sua lavoura. Dois ribeiros, o Vascão e o Foupana, que descem ao Guadiana, fertilizaram o solo do seu concelho, arrancam as árvores dos seus pomares, nos meses de chuvas torrenciais. E, na margem da Odeleite, uma Indústria de lavadeiras, cestas que lembram alcofas, para a pesca e a sua industrialização, servem de ganha-pão a umas dezenas de braços. Defronte, fica-lhes S. Lucar del Guadiana, como Alcoutim empenhada no fabrico de cestas para a indústria da pesca e transporte de carvão. Mas de um e de outro lado do Guadiana, a terra tem a tristeza que anda refletida no rosto triste da gente. Do lado de lá, parece que um vento quente do deserto, vindo do lado de África, sopra já sobre a Espanha. Depois, o rio parece sustar o movimento do deserto e a terra tem ainda tempo de florir e verdejar. Toda a orla que vai de Alcoutim a Vila Real vive da pesca, dos figos e das amendoeiras: em Castro Marim, sobretudo, da agricultura, dos fornos de ladrilho e telha, fabricados segundo as leis ancestrais usadas há 800 anos pelos mouros, das salinas e de uma pequena indústria de rendas e cadeiras de eloendro. Têm estas os fundos tecidos de uma fibra denominada tábua e aqui se encontra a razão daquele velho conceito popular: ir buscar tábua é uma coisa de tão somenos rendimento, que não vale, sequer, o trabalho de a ir colher à terra arenosa onde nasce e vive a esmo...
Sobre as duas povoações paira um espírito benfazejo que se estende a todo o Algarve. Tal como Lisboa tem o «endireita» da Esperança e Beja o seu enfermeiro-médico, diplomado em Lisboa e nos Estados Unidos por um «engenheiro dos ossos», também Odeleite tem o seu Soares, o Soares de Odeleite, endireita, adivinho e curandeiro, especializado em fazer e desfazer casamentos às senhoras de Silves e até de Lisboa...
Estas «figuras» nacionais com sua vasta clientela nas regiões arraianas, não são as únicas que sobrevivem neste vaivém entre Portugal e Espanha. A guerra civil espanhola ficará mesmo a marcar no caminho das fronteiras definidas pelo Guadiana, uma era de transformações repercutíveis. Até lá, tudo eram hábitos enraizados que a guerra destruiu, criando outras necessidades. A margem portuguesa de serviçal passou a ser servida; a margem espanhola, de senhora passou ao lugar de serva.
Aqueles dos portugueses que hoje se esfalfam a «comerciar» mais ou menos legalmente com a Espanha, sedas, calçado, drogas, perfumes e candeeiros, as especialidades mais gratas ao espírito das senhoras estão bem longe de tomar por Sevilha esta orla espanhola, onde tudo é pobreza, dificuldade e abstenção.
Valeram-lhes, durante a guerra civil, aos espanhóis, os seus amigos de fronteira. De lá, deixam entrar o pão, enquanto de cá o deixam sair do forno do compadre que tem um filho em Espanha à sua espera para matar o jejum. Depois, há outros motivos, laços que apertam os povos e prolongam para além do rio o seu afeto e parentela. S. Lucar não tem médico e Alcoutim não tem padre. Quando um português sofre da consciência e quer com ela partir em paz para o outro Mundo, uma sotaina negra toma a canoa sob a vista complacente dos carabineiros e da guarda-fiscal, para a salvar dos flagelos espirituais; quando um espanhol sofre de um mal que os curandeiros de S. Lucar não adivinham, uma bata branca toma lugar na mesma canoa e vai a Espanha curar os males de perigo temporal. A permuta dos tratamentos do corpo e da alma, tem de resto, as suas reciprocidades noutros aspetos da vida fronteiriça. S. Lucar del Guadiana, se deseja telegrafar ou telefonar para Madrid, vai a Alcoutim, por ser mais fácil e mais rápido; se Alcoutim tem doentes com remédios à cabeceira da cama, vai á farmácia a S. Lucar, como quem vai de Cacilhas a Lisboa. Aqui há anos, quando rareavam as casas em Alcoutim e a vida era fácil no outro lado do Guadiana, havia quem trabalhasse em Portugal e morasse, por exemplo, em Vila Nueva de Castilejos...
E, enfim, para mostrar mais um aspeto da vida entre as duas margens, desta que se faz à luz do dia, bastará acrescentar que o chefe da Alfandega de Aiamonte, se quer ir a S. Lucar del Guadiana, como não tem camioneta, por falta de gasolina atravessa o rio para Vila Real que fica a uma hora de caminho, e a remos volta a transpor o rio que o liga à sua terra... Naturalmente, não é preciso dizer que o exemplo «del jefe» alfandegário dá muitos e apetitosos frutos, de maneira saborosa, para as boas relações luso-espanholas...
Disse-se que as relações de fronteiras foram profundamente influenciadas pela guerra civil, porque é verdade. Por exemplo, o Governo determinara que toda a produção de trigo lhe fosse entregue, cabendo-lhe depois a distribuição racional de farinha. Isto que no preto sobre branco era justíssimo, posto nas coisas práticas dava em injustiça. O povo da Andaluzia, ali da beira do rio, era esquecido das suas necessidades. E foram então os médicos portugueses que, arriscando muitas vezes a vida, conseguiram levar a Espanha pequenas fabriquetas, de moagem caseira, para moer clandestinamente o trigo furtado ao manifesto ou levado das próprias searas do próximo Alentejo. Isto foi durante a guerra. Antes, os nossos trabalhadores rurais iam dar o dia fora a Espanha. Depois, a crise espanhola alterou profundamente a sua e a própria vida dos Portugueses arraianos, porque aquilo que era mau para eles passou em breve a ser pior do que tudo o que lhe oferece hoje a Espanha. Então, a Andaluzia daquelas bandas folgava, estoirando vermelha, no folgar. Os belos cravos da feira de Sevilha e dos arraiais do S. João de Braga colavam-se aos cabelos e ao colo moreno das muchachas, como um grito de fé e uma certeza vã. Era por ocasião dos bailaricos, quando, à noite, as algarvias pulavam das pequenas lanchas para as margens espanholas, indo dançar em S. Lucar algum fandanguinho mascarado de fox...
Desses tempos ficou apenas a saudade; um verter de linguagens, cá e lá, que troca as escadas por «escaleras», o presunto por «jamon» ou até «jimon»; o negro do trajar das mulheres de Alcoutim e Castro Marim, a bombazina de contrabando para os fatos deles. Porque o contrabando, sim, esse é que continua. Faz-se como se pode e às vezes não chega mesmo a fazer-se. Em raros pontos das margens do Guadiana, a guarda de cá e a de lá estará mais atenta aos movimentos do rio.
Pela noite alta, quando a sentinela é rendida ou se distrai às turras com Morfeu, os contrabandistas arriscam-se à largada. Chegam a levar perto de cem quilos de carga contrabando de café, de volfrâmio e de tabaco, em grandes sacos de lona impermeável, da cor parda das águas turvas do rio. Lançam o saco pesado ao Guadiana, preso por uma corda à cintura, E a nado, nadando sempre, lá vão atentos à corrente, ao contrabando e ao que possa esperá-los do outro lado do rio, com os homens da farda verde-azul, confundida com a cor das azinheiras.
Alguns chegam com êxito à outra margem. Conseguem puxar o fardo, pô-lo a recato, com a cumplicidade dos que o esperam em Espanha. Mas quantos, quantos, não são levados pela corrente do rio, que mede ali á volta de 250 metros, e arrastados pelo peso do contrabando ou vitimados por uma congestão...
Depois, nem sempre a guarda estará tão distraída quanto precisariam ou estava imaginado.
E muitas vezes sucede que um tiro seco e logo outro soam pela noite, porque o volume do contrabando, vogando ao cimo das águas, serve de ponto de referência, para calcular o alvo, O rio sepultará, sem mais queixas, averiguações ou protestos, o segredo daquela noite trágica. As águas nem terão tempo de se tingir de sangue. A vida do contrabandista, um homem fora da lei, não tem história nem espólio moral que se defenda, a não ser entre aqueles iguais da sua raça que por prudência se calam…
Um barco acostado no cais de Alcoutim
Assim se vive e morre ainda hoje em Alcoutim, vila de nível economicamente débil, tal como em Mértola e Castro Marim.
Antes das estradas, o rio Guadiana tinha um valor económico e social que é possível ainda compreender, se se lembrar que era ele a única via, entre o Alentejo e o Algarve. Durante séculos, Lisboa comunicava com estas margens algarvias pelo mar e pelo rio. Ainda há, naturalmente, quem vá do litoral do Algarve até Mértola pelo curso do Guadiana que servia, há poucas décadas, o comércio entre Vila Real, Alcoutim e aquela vila. A laranja dos laranjais magníficos de Castro Marim, a amêndoa dos amendoais algarvios - sem par, até na Espanha - os trigos e as cevadas do Algarve e do Alentejo, os seus figos e alfarrobas, tudo saía outrora pelo Guadiana para longes terras e distantes paragens. Hoje é sobretudo a Mina de S. Domingos, com todas as consequências do seu comércio intenso de exportação de pirites que mantém a tradição da navegação de longo curso, nas águas do Guadiana.
Tal como sucede hoje no Tejo, cujas populações da Borda de água deixaram já de se servir do seu curso de belas águas remansosas, também o Guadiana chora decadência e concorrência da grande camionagem, muito intensa nas províncias do Sul com as vantagens do serviço de «porta a porta».
Cerca de 400 contos rende em Alcoutim o sal do Guadiana
Castro Marim - 1863
A terra do «salecále» - Castro Marim - que pelo rio mandou, até há pouco, para Inglaterra, as suas saborosas laranjas, vive, ainda, da riqueza das suas salinas. Renderam-lhe, o ano passado, 393.960 contos os milhares das suas toneladas de sal, do melhor que se produz em Portugal e com bons clientes na Madeira e nos Açores. E esta é na verdade, a marca mais especialmente da paisagem económica desta banda da margem do Guadiana.
Perdem-se de vista os tabuleiros das salinas. sincopadas ao longo de quilómetros, onde trabalham centos de marnotos, gente que traz no rosto e em todo o porte a marca da sua raça fenícia. Magros, morenos, duros de músculos, cara sombria e envelhecida, esta é a gente que, na mudez dos seus lábios, fala da sua dor, da vida endurecida que leva nas marinhas, onde aufere pouco mais de 20 escudos por dia. Castro Marim, penúltima etapa nesta longa jornada, é o único concelho do País que está separado em dois. Quando Vila Real passou a sede, defendeu os interesses dos seus filhos, exigindo um corredor sobre o mar. Não teve nunca a ampla significação de Memel ou Dantzig, mas não se pode dizer que entre Vila Real e Castro Marim todos os problemas se resolvem de coração muito aberto, pelo menos, os Castro-Marinenses não poderão jamais esquecer quanto perderam no reinado do sr. D. José I. E é isso que os simpáticos filhos da linda terra dos laranjais e das salinas, sempre que vêm a Lisboa, não se esquecem de passar pela Rotunda para lançar sobre a estátua do Marquês uma palavra de protesto.
E, entretanto, o povo vai trabalhando, juntando novos hábitos à sua vida de camponês. Até aqui há anos, dizia que quem quiser fazenda que a faças e a fazenda ia ficando por fazer, de pais para filhos, sem árvores que compensassem nas horas graves de crise. Hoje, o arraiano vai vencendo a tradição e planta os seus pomares ou amplia os seus campos de arvoredo. A ele tem ligado o seu destino e também os seus milenários misticismos. Debaixo das figueiras que lhe dão do melhor dos seus proventos, jamais dormirá a sesta ou entrará senão para a apanha dos figos em homenagem à memória de Deus e ao ultraje que recebeu de Judas Iscariotes...
Vila Real de Santo António
E aqui chegamos ao fim desta viagem, ao longo do curso do Guadiana vendo e ouvindo gente de aglomerados economicamente débeis, membros de populações estáticas nos seus índices demográficos. Para trás, bem longe, ficaram Mértola, Mina, Pomarão, Alcoutim, e Castro Marim. Aqui, entre Castro Marim e Vila Real de Santo António, está Aiamonte, leque de cal branca, à andaluza, mancha de Espanha a evocar, com seus telhados alvos, eirados marroquinos, uma aguarela casta de Jerusalém, a que não falta, sequer, a pluma ondulante das palmeiras.
Tudo é calmo, repousante, tudo parece indicar que o leão de Espanha adormeceu aos pés do seu castelo em ruínas sem remendo nem remédio possíveis.
Do lado português, então, ficaram para trás as casas de alva sobrepeliz. Em Castro Marim são já muitas as casas amarelo-laranja. Aqui em Vila Real, a contrastar com o outro lado espanhol, cada casa se veste de novas cores gritantes, como se de um lado fosse o fim da Europa e do outro o começo do Atlas que nos deixou, ao entrar no oceano, sobre a orla de pinhais para Monte Gordo, uma colónia brilhante de camaleões exóticos...
Dizem os seus propagandistas que Vila Real é o primeiro porto do Sul do País e eles sabem bem por que o dizem: em 1951, da foz do Guadiana saíram para o continente, ilhas adjacentes e estrangeiro, 267.707 toneladas de pirites, cortiças, alfarrobas, enxofres, conservas, figos e sal, tudo no valor de 155.099 contos; entraram no Pais, rio acima, passando por aqui, por Vila Real, 14.021 toneladas de fosfatos, madeiras, batatas para sementes, combustíveis, ferro e outras mais, no valor de 13.505 contos: 299 navios de alto bordo entraram no Guadiana, com a tonelagem bruta de 251.936 toneladas.
Navio "Mira-Terra" no porto de V.R. de Santo António
Estes números, que são essenciais completam-se com outros, para significar o valor absoluto do Guadiana, porto de abrigo para os barcos de todos os tamanhos que partem para a pesca na costa e no alto mar: Atualmente, são 1.334 os que se entregam à faina rude da pesca; 1.567 são os operários, quase todos mulheres que transformam a maior parte dessa pesca em conservas; e nos cinco estaleiros desta margem do Guadiana, maiores do que o do outro lado de lá, do lado de Aiamonte 38 são os calafates que conservam e constroem os barquinhos de ir à pesca.
É desta gente e dos restantes 8 mil habitantes que se vai falar, nas suas relações com a Espanha e nas suas Influências marcadas pelo rio.
As meninas de Vila Real vão a Espanha às compras enquanto os rapazes espanhóis vêm a Portugal tomar café
Nenhuma canção ou cantar do povo, rifão ou dizer popular se encontrará por ali para lembrar o Guadiana. A gente de Vila Real é nova em Vila Real. O rio, o homem e a terra são três elementos que se juntaram e entenderam há 200 anos nesta margem, onde a tradição não tem a doce poalha trazida pelos séculos. Aqui, o rio é simplesmente um elemento de utilidade e rendimento, para a vila e para essa vizinha «Espanha, donde não vem bom vento nem bom casamento» referência maliciosa àquele levante soprado do Norte de África, através da terra espanhola que traz dores de cabeça aos de Vila Real e dos sapais da sua margem os importunos mosquitos. E também, referência a muitos casamentos de portugueses e espanholas, alguns não muito felizes, por diferenças de clima, temperamento e costumes. Um dos sinais do muito sangue espanhol que circula nas veias dos vila-realenses está na cor clara da sua pele, nos lábios rubros e carnudos, de uma compleição que lembra quadros de Goya. E também nos seus apelidos, Os Ramires, os Perez, os Sanchez evocam esses laços de sangue entre Portugal e Espanha, alguns deles mantidos na sua grafia espanhola. Mas se o amor às vezes tem jogado à cabra-Cega, a fortuna soube bem em que porta foi bater, porque desses são, quase sempre, as melhores casas de Vila Real.
As relações entre as gentes não se fazem, aliás, apenas por motivos de coração: as meninas de Vila Real de rede de fio «nylon» ao ombro, vão a Aiamonte aos grupos, fazer as suas compras; os rapazes espanhóis vêm a Vila Real tomar café e cerveja, depois da hora do almoço, como quem vai do bairro Azul à baixa. Muitas vezes, ao entrar-se num «café», dão-se os «bons dias» à assembleia ali reunida e respondem uns «buenos dias»...
E se mais gente não vai e vem entre as duas margens, é porque as lanchas fazem apenas duas carreiras diárias, a cinco escudos por passagem e, fora do seu horário, quem quiser atravessar o rio de dia - de noite, até á meia-noite, só os automóveis - terá de pôr 50 escudos no orçamento. E, assim, todos os dias aparecem excursões de espanhóis que vão aparentemente para visitar Vila Real, mas cujas visitas ficam em regra pelas mercearias. Meia hora depois, todos de embrulhos iguais, debaixo do braço, já os excursionistas estão prontos para regressar com os seus cinco quilos de açúcar, tal como os vimos, em peso, reverendos e alunos de um colégio de Huelva.
Estas carreiras normais e anormais fazem-se, aliás, em condições especiais: para lá, as lanchas são portuguesas; para cá, vêm trazer os passageiros as lanchas espanholas...
Enfim, até aqui há anos, tudo entre Aiamonte e Vila Real era simples, fácil e natural. Tudo eram caras conhecidas, tudo eram relações de parentela e amizade. Depois, veio a P.V.D.E. e ninguém pode passar sem o seu passaporte, salvo-conduto ou simples senha de arraiana, estas apenas para as «mulheres da carreira», as candongueiras, que é o nome aproximado que o povo dá ás candongueiras. E dizemos aproximado porque é difícil aqui fixar a grafia e pronuncia de certas palavras. O povo fala por aproximação de sons. Se lhe pedimos que repita uma, duas, três ou quatro vezes, de cada uma dirá de sua maneira e por fim com tamanha complicação que a palavra inicial terá deixado de existir.
São à volta de três centenas, devidamente registadas, e com licença, cada uma, de só uma vez por semana levar e trazer compras, essas mulheres de carreiras, com permisso, de levar um pão de quilo, açúcar e um pouco de café. Na volta, podem trazer três quilos de tomates, bananas, ananases, ervilhanas - o amendoim - ou ainda «gambas» parentes próximos dos nossos camarões que o lisboeta conhece por aí, de importação. Ainda o tomate algarvio dorme na sua concha de terra e folhas de piteira, protegido do vento do Levante e das geadas e já Vila Real está farta de comer do que chega das Canárias, por Aiamonte; ainda as nossas ervilhas saloias mal infloram, e já os griseus inundaram esta banda do Algarve; se os pescadores da margem portuguesa só pescaram sardinha ou biqueirão os espanhóis mandar-lhes-ão linguados e pescadas de Huelva, mais ou menos passados aos direitos.
Pela manhã, depois da sua volta pela vila, os leiteiros seguem a aviar os seus fregueses em Aiamonte, em geral as entidades oficiais que outro lado dão facilidades para o seu desembarque. Porque os Portugueses e Espanhóis do outro lado do Guadiana têm, em Vila Real, os seus fornecedores, depois da Guerra Civil. E fornecem-se bem, realmente, as senhoras «entidades» oficiais - cada cabaz de metro de altura leva aos 25 pães de quilo, pacotes de mercearia - fora o quanto, além disto permitido, pode ser passado pelos carregadores dos fornecedores. A estes carregadores cabe, na verdade, uma função fundamental para as boas relações gastronómicas luso-espanholas desta foz do Guadiana. São as suas manobras ágeis e habilidosas, dentro e fora da alfandega, com entradas e saídas estratégicas, que fazem seguir pelo rio, às vezes em duplicado, os géneros autorizados...
Todavia, são as mulheres da carreira as que dão mais cor e mais pitoresco ao quadro deste comércio. «Andar na carreira» é profissão. E como tal são inscritas, assim podendo fazer o seu comércio simples, legal, e sobretudo, abrir caminho para outro mais amplo e mais rendoso. São elas, as da carreira, mulheres vivaces,
Mexidas e arteiras. Começam a treinar-se ainda novas, as crianças, aliás, não são oficialmente admitidas, embora às vezes possam substituir as mães doentes, por exemplo.
Há nelas ciganice e arteirice, desenvoltura e de vencer a generosidade oficial, jeito para a lamuria da pedincha, na intenção de vencer a generosidade oficial.
- Deixe-me levar a Aiamonte estas alpargatas, para trocar, são da minha filha, mas ficaram-lhe grandes…
- Você bem sabe que não pode encarregar-se de encomendas...
- Então não sei, mas isto é um favorzinho à minha filha que não pode vir...
- Suma-se da minha vista...
E a mulher some-se-lhe da vista, para o caminho da lancha, a cuja entrada está a P. I. para verificar e a sua senha, simples retângulo de cartão está em ordem.
Uma outra aparece com uma boneca de que se lhe vêm só as pernas e um pouco da cabeleira.
- O senhor deixe-me ir levar esta boneca a consertar, é uma esmola, que está toda escangalhadinha...
- Pois é. Mas você logo traz-me uma boneca nova, não é verdade?
- Ai, eu ia lá fazer uma coisa dessas!...
- Ande lá, ande lá...
E ela vai andando entre aquele vaivém de gente, os que partem e os que chegaram e que lá fora, em bicha, aguardam licença para passar o peixe, o tomate, as cestinhas de bananas vindos de Espanha...
- O peixe não pode passar, é proibido...
- Mire usted...
São quatro tainhas para o almoço de uns cunhados...
- Siga!
De vez em quando, uma senhora de Vila Real, chega, cumprimenta:
- Dá-me licença de trazer umas meias de vidro?
O funcionário, com uma «nonchalance» amável, compreensiva e bondosa, é uma espécie de juiz de águas que a todos julga e a todos absolve com uma sentença tão justa como as de cristo, visto que são humanamente idênticas.
A quase todos vai dizendo que sim e ninguém o pode orgulhar-se de o enganar, porque ele, simplesmente, cerra os olhos...
E como não usar de «nochalance», se 600 metros para lá, na outra margem do Guadiana, há portugueses, irmãos dos que estão do lado de cá? São em geral pequenos lavradores ou até portuguesas casadas com espanhóis. E são uns e outros os que mais se dedicam às parentes inofensivas para presentes de família, embora, por toda a parte sempre apareça - ou não apareça...- quem faça contrabando em alta escala, muitas vezes disfarçado, sob as águas do Guadiana, nas quilhas dos barquitos que o sulcam.
Hoje, porém, contrabando para Espanha não interessa. A peseta está desvalorizada, os artigos em Portugal estão pela hora da morte. Na sangria económica, afinal, só os do lado de lá podem lucrar, porque comprando ali por baixo preço, poderão vender bem do lado de cá. Isto hoje. Porque, aqui há 20 anos, ainda os espanhóis se recusavam a receber o preço das mercadorias em escudos. Era no tempo em que os duros se pagavam a 28 escudos e os de Vila Real se passavam para Aiamonte dois ou três meses, pela ocasião das ceifas.
É para a gente do rio e também para a do mar que o Guadiana tem, naturalmente, a sua significação total. Quando há cheia ou vendaval, os barcos de Vila Real, sem porto de pescadores, que tanta falta lhes faz, vão acolher-se aos esteiros de Castro Marim e também de Aiamonte. Simplesmente, os de lá, como a barra está às vezes assoreada, largam para Huelva, onde o peixe é 50 por cento mais barato. Esse assoreamento e a falta da doca de pescadores, no porto internacional de Vila Real com carreiras regulares para a Madeira e Açores que vêm carregar aqui milhares de fardos de palha e toneladas de grão-de-bico, tremoço e azeitona do Algarve e do Alentejo são os dois pontos cruciais da política económica associada ao Guadiana, hoje tão intimamente ligado à vida da região. Beja e o Baixo Alentejo, desde que duram o seu abraço pela estrada, deixaram de depender dos encargos do porto de Lisboa, para ficar ligado ao mundo exterior, através da foz do Guadiana. É ele a sua verdadeira porta para o oceano, com a vantagem económica de amealhar quase 200 quilómetros nas distâncias. A lavoura alentejana tem agora o seu porto comercial que dali lhe envia as batatas para semente, os fosfatos; a indústria das duas províncias tem agora mais à mão o ferro que diretamente lhe envia a Alemanha e dentro em breve as indústrias de cortiça que venham a ser criadas, diretamente também se lançarão no caminho da exportação. No que respeita ao seu abraço à Espanha, o rio traz-nos os espanhóis nos seus «sarsilhos», que andam por ali na metade portuguesa à pesca de «pé de burrinho», um marisco que no dizer do tio Romão, se parece com a amêijoa, mas fica sempre com areia e aquele gosto a «fango».
No Inverno, como os pescadores de Gordo, socorrem-se da «conquilha», outro marisco, apanhado com um movimento rotativo dos pés nas areias e a ajuda de «chalavares», do feitio de uma hélice de navio. Além disso, embora legalmente não possam pescar peixe do lado de cá, vem às águas portuguesas do Guadiana apanhar caranguejos e o «enzoi pra botar o choco».
Acima das leis, estão realmente as relações entre os homens. Por isso o espanhol, que não dá valor industrial ao biqueirão, quando o encontra no seu caminho, corre a dar parte do achado aos camaradas portugueses que mantém em Vila Real a sua mais importante industrialização, as anchovas, de boa nomeada universal.
Mais de 7 mil contos de biqueirão se pescaram, o ano passado, em dez dias apenas, ali à boca do Guadiana que o devolveu depois ao mar, a caminho da América do Norte.
Então, como noutras muitas vezes, o colorido, a azáfama, a gritaria, o roncar das camionetas, vindas de todos os pontos do País, a música dos pescadores puxando as redes, o silvo das traineiras de todos os portos da orla portuguesa, avisadas pela rádio da farturinha, tudo isso faz que todos, ricos e pobres, esqueçam as semanas e os meses de escassez, para só ver e sentir a alegria da abundância.
Chegam a ser às 100 traineiras que se juntam na foz do Guadiana e não é por isso em vão de que Vila Real diz ter com as suas 18 traineiras e 28 enviadas, a segunda frota de pesca do Algarve e o melhor porto do Sul do País. O povo come, enfeita-se, gasta no que lhe vem á mão, sem olhar ao valor do dinheiro, esquecido de que tem filhos pequenos e no dia seguinte ficará outra vez, numa barraca esburacada, onde vive debaixo de um guarda-chuva, a vender por dez escudos cadeiras que comprou a 50 e a comer, ele a mulher e os seis pequenos, dos 56 escudos por semana que lhe deram na fábrica de conservas.
Tem um linguarejar muito seu e surpreendente este povo fronteiriço do Guadiana. Se queremos recolher as palavras da sua cantilena, ao puxar das redes, ficaremos apenas na impressão de que eles dizem pelo menos, em Monte Gordo, cantado a duas vozes, com as suas belas vozes de barítono:
Oh! leva oh! leva
Oh! rupilava
Ola pá rede,
roda faena!
É realmente difícil identificar a sua linguagem com o rio e a Espanha. Mas não será impossível recolher frases como esta de «queres anadar que eu te aprendo?» dizem os estudiosos que influenciada pela passagem dos franceses que aqui deixaram na confusão da sua tradução do «apprendre».
Transcreve-se um pedaço colorido da descrição do tio Romão, homem da beira-rio e da fábrica sobre uma sua aventura de há 30 anos. Tinha ele um botezito que o irmão amarrou à outra margem do rio. Veio a corrente e levou-lho. Tio Romão ouviu dizer que para lá da ilha Cristina, do outro lado da Espanha havia sido encontrado um barco que decerto seria o seu. Meteu-se aos sapais, enterrado no lodo passou aos campos cobertos de manima-erva. para o gado, tremeu diante de um carabinero, porque naquelas terras distantes não tinha papel que o identificasse, passou fome, andou por Figueirita, onde há uma colónia de portugueses fugidos do Monte Gordo no tempo de Pombal, mostraram-lhe muitos barcos que não era o seu e foi dar à estalagem sinistra de uma portuguesa.
«Alumiou» três homens que o abonassem isto é, chamou três seus conhecidos que o apresentassem, e chegando perguntou à portuguesa:
- Patricia, e ai cama?
- Sim, ai lá em cima cama e uns cobertor.
Olhei prós que alumiara e dissi:
- Já vamo.
Comi uns peixe frito. Me assenti.Fiz um embelenzinho, quer dizer dormiti e às tantas me fui á la cama. Fiquei em seroulha me deiti mas dormir não dormi. Aquilo era assim… tantas a pulga. Foi atão que um dos homem me disse te empresto uns posi que tenho aqui prás pulga. Mas por mais que eu deitasse dos tai posi pra matar as pulga....
Tio Romão levantou-se, teve outras peripécias no dia seguinte, passou fome, regressou endividado a Vila Real nunca mais teve notícia do seu rico botezito.
O falar do tio Romão é tipicamente beira-guadiana, com a inversão na colocação dos pronomes e outras influencias arraianas próprias para os estudiosos decifrarem.
Dizem em Vila Real que até ao meio-dia o povo fala português e, do meio-dia para a tarde, fala o espanhol, com a chegada dos que vêm do lado de lá da outra margem. Tio Romão confirma-o nestes termos importantes:
- Ai que ver que sim. Aqui todos falam o espanhol com os espanhoi da outra banda que andam sempre por aqui. Somo camarada.
Olhe, ali está a «Paquito», uma enviada portuguesa....
E conta histórias dos mano Zo e do Joaquim Gome, até que vem por ele um rapazinho da parte da irmã que o chama para ir ao xirez-papas de milho, seu jantar de pobre...
O Sol baixou, uma penumbra já envolve a terras. Erguem-se os serros das margens do Guadiana... Para lá, tudo é trabalho, humildade, singeleza e sacrifício. Cada terra com seu uso e também com os seus problemas, O rio, aqui, criou-os há muitos séculos, mas à medida que terra vai resolvendo os seus, vão ficando mais confusos aqueles que lhe respeitam. Ficarão, sabe Deus por quanto tempo, sonhadoras, esquecidas em sua nostalgia, a minguar-se de corpo, uma vez que de espírito assim os vemos cada vez maiores, maiores...
Altos serros, erguem-se agora de novo. É noite, noite cerrada, já não se vê, outra vez o Guadiana...
Manuela de Azevedo - Diário de Lisboa - 1952
